Sonhos (1 de 3)

I

ELA

O cheiro de coentro se espalha pela cozinha. Há tempos ela não faz uma moqueca. É o prato preferido do seu marido e, portanto, só deve ser preparada em ocasiões muito especiais. Hoje, infelizmente, é um desses dias.

Porque ela sabe que ele vai chegar em casa arrasado. Como das outras vezes. E uma bela moqueca vai ajudar a animá-lo. Como das outras vezes.

Novamente ele foi para uma reunião com um editor. Foi mostrar seus escritos, na esperança de que alguém se interesse em publicá-los. Ele já tem dois livros prontos e várias ideias para muitos outros mais. É todo um universo de histórias interligadas. “Tipo o Tarantino, cujos filmes se cruzam”, ele costuma dizer. “Eu só preciso de uma chance, que o primeiro dos livros seja publicado.” Ele tem certeza que será um sucesso e a partir daí a coisa vai deslanchar.

O problema é que ninguém acredita nele. Ninguém acha o trabalho dele bom o suficiente. Nem mesmo ela. E ela se sente culpada por isso. Como esposa, ela deveria apoiar. Sempre e incondicionalmente, não? Não é isso o que os cônjuges fazem? Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nas obras geniais e nas porcarias?

As duas obras que ela pôde ler em primeira mão até que não são tão ruins. Mas também não são boas. Ela queria, do fundo do coração, ter gostado mais. Mas as histórias não empolgam, não têm aquela emoção que te prende, aquele tchans que te faz pensar neles por semanas depois de terminar, que te obriga a indicar para os amigos. “Cara, você não sabe o que eu li…”. Ela não sabe explicar por quê, não entende nada disso de escrever. Só sabe que falta alguma coisa.

Hoje ele foi tentar de novo. Mais uma reunião, mais um editor. Quantos foram já mesmo? Ela perdeu a conta. Parou na décima vez. Ele sempre sai animado “Hoje é o grande dia. Estou sentindo que agora vai”, e volta arrasado, deprimido, mal humorado.

O pior é que enquanto esse sonho ser escritor, o grande sonho da vida dele, não se realizar, ela não vai poder realizar o grande sonho dela: ser mãe. Ele já deixou claro e os dois já discutiram inúmeras vezes, algumas bem feias até. Mas não teve jeito, ele foi intransigente: enquanto não se firmar como escritor, não quer nem pensar em ser pai. A explicação é que uma criança exige dedicação e atenção absolutas, e ele não teria nem tempo e nem foco para escrever. Ou seja, ele precisaria ter seus livros publicados antes disso. Faz até certo sentido. Crianças precisam mesmo de dedicação e atenção absolutas. Ela não esperaria nada menos do que isso dele. Por isso aceitou postergar seu sonho, enquanto ele não alcançar o dele. A hora há de chegar. No momento é preocupar para não errar na moqueca.

Então, ela ouve a chave girando na porta da entrada.

Ele está chegando!

Não é possível! Ele veio muito mais cedo do que o previsto. O encontro de hoje deve ter sido pior do que ela imaginava. Ou talvez nem teve encontro! Meu Deus! De qualquer forma ele estará extremamente deprimido. E o prato preferido dele nem está pronto.

Ela limpa as mãos no avental e corre para recebê-lo.

“Não fica assim. Algum dia vão perceber o seu valor. Você vai ver.” São as palavras que ela se prepara para dizer. Como das outras vezes.

A porta se abre. Ele a encara. Sua feição não mostra lipemania como das outras vezes. Ao contrário, ela acha que vê até um ligeiro sorriso. Tímido, quase imperceptível, mas um sorriso. Aquilo a anima. E a alegria fica ainda maior quando ele fala:

– Meu amor, vamos ter nosso filho.

(continua)

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