Uma em um milhão – parte 3

Leia antes da parte 1

ou a parte 2

***

Eu estava chateadíssimo. Não pude entrar no jogo, perdi o dinheiro do ingresso, deixei minha cerveja de lado e, pior de tudo, toda a minha família podia estar também contaminada. Realmente, não tinha nada de positivo na novidade, só o resultado do exame de covid.

Mas a gente quase não se expunha, raramente saía de casa e, na eventualidade de sair, nunca era sem a máscara. Como é que fui pegar isso? A caminho de casa, passei na farmácia e comprei um kit de autoteste para minha esposa fazer.

Uma coisa boa é que eu não tinha sentido nada, e tampouco minha esposa ou minha filha tinham apresentado qualquer sintoma (caso elas também tivessem infectadas, o que era quase certo, dado que compartilhávamos a mesma casa, bem de pertinho). “Se bem que na segunda-feira eu acho uqe estava mais cansado mesmo, e se prestar atenção até acho que estou com uma dorzinha de garganta agora, e uma pequena dificuldade de respirar, mas coisa pouca”, disse para a minha esposa.

De qualquer forma, precisaríamos nos isolar, não pderíamos sair de casa, muito menos a minha filha ir para a escola, e a expectativa de ficar com uma criança ativa por dez dias apenas dentro de casa por si só já nos cansava. Liguei para o Serviço de Saúde para informar que tinha testado positivo, eles ratificaram a necessidade de confinamento e iam seguir nos monitorando. O autoexame da minha esposa deu negativo e, só por desencargo de consciência, eu fiz um dos autotestes e ela refez o exame. De novo o dela deu negativo e o meu, surpresa!, também. Foi a primeira vez que o alarme de “e se o resultado positivo estiver errado” acendeu. Mas era bastante provável que estivéssemos fazendo algo errado no autoteste. Decidi que quando ela e minha filha fossem fazer o exame na farmácia no dia seguinte, eu faria de novo, só para ter certeza.

Dia seguinte, bora lá a família inteira para a farmácia mais próxima, aqeuel aperto no coração não só de estar infectado, mas de obrigar uma criança de 2 anos a fazer o exame de enfiar um cotonete no nariz, mas a profissional era muito boa, nossa filha é um anjo e tudo correu bem. Quando os resultados saíram, mais um sinal de opa! tem algo estranho aí: nossos três exames deram negativo. A “dorzinha de garganta e a pequena dificuldade de respirar, coisa pouca” milagrosamente desapareceram quando li o resultado.

O teste de PCR com certeza iria dirimir qualquer dúvida, mas eu só conseguia fazê-lo se um médico me desse uma receita. Quer dizer, se eu quisesse fazer de graça, mas eu podia pagar uns 60 ou 80 euros para fazer particular. Liguei para o Serviço de Saúde e expliquei a situação, um primeiro exame positivo, depois mais dois negativos, assim como negativos estavam também o do restante da família. “Será que não seria bom fazer um PCR não? Assim, só uma sugestão”, e eles concordaram, e disseram que o médico me mandaria o pedido em uns três ou quatro dias e que, se não chegasse nesse meio tempo, para eu ligar de novo. Era quinta-feira à tarde e, de novo, lembrando de toda a burocracia que venho enfrentando em Portgual há mais de um ano, eu imaginei que o pedido para o exame não chegaria na sexta, afinal sexta é sexta, né, quem trabalha de sexta?, e nem no sábado e nem no domingo, e com sorte só na semana seguinte. Se bem que eles disseram num tom meio vago “entre três ou quatro dias, msa pode não chegar, aí você nos liga de novo”, que não seria surpresa de o tal pedido de exame de PCR chegasse só dali a dez dias.

E queimei a minha língua. A burocracia portuguesa e os processos e as repartições públicas são sim de enlouquecer, mas parece que nessa coisa de covid eles não estavam brincando, todo o processo parecia ter uma eficiência incomum, e na sexta-feira na hora do almoço o médico me liga, confirma o caso da covid de Schrodinger, com o teste positivo e negativo ao mesmo tempo, e diz para eu passar no posto de saúde e pegar o pedido do PCR. Tão logo desliguei o telefone, já partimos todos rumo ao posto, minha esposa fez questão de acompanhar para resolver logo o assunto, e levamos nossa filha a tiracolo.

Eu sei que sou prolixo, descrevo as situações com detalhes excruciantes, então agora serei sucinto, poupando o leitor de uma entediante maratona de “vai ali, pega senha, fala com fulano, não é aqui, vai na outra sala, mais uma senha”, mas depois de algumas horas finalmente peguei a tal guia de exame. Aqui, uma menção honrosa à minha digníssima esposa que, durante todo esse processo de buscar o pedido de exame, esperou dentro do carro, e sabe-se lá como conseguiu entreter a nossa filha por duas horas. Sim, duas horas com uma criança, dentro de um carro estacionado. Nessas horas a gente vê a capacidade de superação humana.

A sorte ainda estava nos sorrindo, pois encontrei um centro ali perto que fazia o teste PCR, gratuito, sempre bom lembrar, e tinha horário para dali a vinte minutos. O exame, aliás, é horroroso, se você quer um bom motivo para não pegar covid, além de não correr o risco de adoecer e não conseguir respirar e ser internado e talvez quem sabe até morrer, eu diria que não precisar fazer esse exame é um desses bons motivos. Tem-se a impressão que eles recolhem material da sua amídala, a partir de um troço que te enfiam no nariz. Mas nem tudo foi perdido, depois de inúmeras tentativas malsucedidas de enfiar o troço na narina direita, aprendi que tenho ali algum tipo de desvionasal ou do septo, que a narina esquerda em compensação é uma marivilha, uma enorme rodovia reta e sem pedágio. “Na próxima vez que fizer este exame, já pode informar à pessoa para usar sua narina esquerda”, aconselhou a enfermeira, sempre sorridente e simpática. Difícil ficar nervoso com alguém que está sempre sorridente e simpático com você, mesmo se esse alguém estiver enfiando algo nas profundezas do seu nariz. “Em quanto tempo sai o resultado?”, perguntei ainda entre as lágrimas que o exame invariavelmente provoca. “Em até 48 horas. Mas tem vindo em cerca de 36h. Mas se calhar pode vir até antes.” Gosto disso, de precisão.

Mas ela no fim das contas não estava errada, 36 horas depois veio a confirmação de que eu estava negativo para a covid, e que o primeiro exame tinha sido um falso positivo. Tinha visto que falsos positivos nesse caso são raríssimos, tipo uma chance em um milhão, e eu tinha sido sorteado. Para ganhar na megasena essa probabilidade não me alcança, mas para dar um falso positivo num teste, algo que vai te dar um monte de dor de cabeça, aí sim.

Nada que devesse me surpreender. Pelo menos, deu uma boa história.

Uma em um milhão – parte 2

Leia antes a parte 1

***

Peguei um barco para atravesar o Tejo, um trem e um metrô, e a todo torcedor benfiquense que encontrava eu perguntava sobre a necessidade do tal teste, se precisava mesmo, se eles tinham feito, onde dava para fazer, e todos confirmavam que o teste era obrigatório, e todos já tinham feito seus respectivos testes no dia anterior. Parecia que só eu não tinha essa informação prévia. E não, ninguém, sabia onde eu poderia fazer, ou se próximo ao estádio haveria algum lugar fazendo o teste.

Enfim cheguei acompanhando a massa à frente do estádio. Ainda tinha duas horas para conseguir o teste negativo. “Os guardinhas da estação vão saber, com certeza. ”

“Com licença, o senhor sabe onde posso fazer o teste anti-covid por aqui?”

“Aqui na estação não fazemos não senhor”

Há mais de um ano morando em Portugal e eu ainda tenho dificuldade com este modo de pensar português. Eu sempre me esqueço desta literalidade. “Aqui que eu digo é nos arredores no estádio, não aqui, na estação.”

“Ah, pois. Não sei não.”

Saindo da estação, parei no primeiro vendedor de camisas e adereços benfiquenses que vi. Esses caras são safos, sempre sabem de tudo, com certeza vai poder me apontar um lugar, sem erro.

“Não sei não senhor”, respondeu ele quando o indaguei. “Mas está vendo aquela luz verde ali?” – e apontou um ponto numa distância onde minha visão, especialmente por já ser de noite, não chegava.

“Sim, sim, estou vendo.”

” É uma farmácia. Quem sabe não estejam fazendo o teste ali?”

Agradeci e saí correndo, desviando de torcedores e de carros e de outros obstáculos, sem perder o foco da direção indicada, até que, enfim, vi ao longe a tal luz verde. Era sim uma farmácia, e uma enorme fila já me dizia o que eu mais queria ouvir. Só confirmei com uma das pessoas na fila. Sim, era a fila para fazer o teste anti-covid. Nunca fiquei tão feliz em entrar em uma fila grande, bem grande.

Mesmo assim eu sentia uma certa apreensão. Se tem algo que aprendi em Portugal é que nada aqui, nenhum documento ou atestado ou seja lá o que for é simples e fácil de se obter, muito menos tão simples e tão fácil como eu precisaria que fosse a obtenção desse teste. Eu precisava marcar horário no site da farmácia, daí então, tendo recebido o e-mail confirmando a marcação, eu deveria estar naquela fila, para retirar o ticket do vale-teste, e então entrar em outra fila, para só então efetivamente fazer o teste. E o resultado chegaria no meu e-mail. Isso tudo, com sorte, eu conseguiria fazer dentro da uma hora e pouco que faltava para começar o jogo.

E você acredita que eu consegui? Que o processo todo, apesar de várias etapas e filas, correu sem problemas? Em uma das etapas, inclusive, em uma das triagens para chegar nome, endereço, documento, etc., algo curioso aconteceu. A mulher disse meu nome, eu confirmei, e então disse meu bairro, que confirmei, no exato momento em que o rapaz do meu lado conbfirmava o nome e o bairro dele para outra atendente e, para a surpresa de nós quatro, constatamos que eu e ele tínhamos o mesmo nome e morávamos no mesmo bairro. “Não duvidaria que estamos sentados lado a lado no estádio”, brinquei.

Fiz o exame e saí em direção ao estádio ainda com tempo para tomar uma cerveja e comer alguma coisa, quem diria? Mandei uma mensagem para minha esposa dizendo “olha, foi tudo tão rápido, e simples, e deu certo, e o exame era gratuito, pago pelo governo, acredite!, que estou com medo. Não estou acostumado a ter tanta sorte, capaz do exame dar positivo.” Rirmos e ela me disse para aproveitar, e eu segui o conselho dela, e fui direto pegar uma cerveja num boteco cheio de animados torcedores benfiquenses. Peguei minha cerveja, que mesmo sendo em copo de plástico estava descendo uma delícia, e fiquei ali saboreando a cerveja e todo aquele clima pré-jogo. O Benfica precisava ganhar seu jogo e o Barcelona precisava perder o outro jogo, que acontecia no mesmo horário, para se classificar. Difícil? Sim. Impossível? Não. É por isso que são chamados de torcedores, afinal, não? Torcem sempre pelo melhor, mesmo que seja improvável. Foi quando meu telefone toca e eu atendo:

“Estou.” (“Estou” é o alô. Daquelas coisas que só morando no país você aprende)

“Senhor Paulo?”

” Sim, eu mesmo.”

“Aqui é fulana, da farmácia. O resultado do seu teste acabou de sair e deu positivo.”

“Cuméquié?”

(continua na parte 3)

Uma em um milhão – parte 1

Eu estava empolgadíssimo. Não apenas porque seria um dos primeiros eventos públicos após quase dois anos de pandemia e confinamentos, mas porque seria a primeira partida de Champions League que eu veria ao vivo, no estádio, após quase quarenta e tantos anos.

O jogo, Benfica x Dínamo de Kiev, nem era um jogão daqueles, era tipo um gringo empolgado para ver uma aprtida de Libertadores entre Olímpia do Paraguai versus Deportivo Táchira da Venezuela, mas quem se importava? Eu estava empolgadíssimo. Sabe quando a gente era criança e ia ter aquela excursão da escola ao Playcenter? Nesse n[ível de empolgadíssimo. Contando as horas para o jogo, já tinha repassado toda a documentação, para nada dar errado: passaporte ok, ingresso tá comigo, atestado de vacinação tá na mão, máscara duas só por garantia. Foi quando disseram:

“Ó mas agora precisa apresentar um teste negativo de Covid também, para poder entrar no estádio .”

“Cuméquié?” (esta é a expressão padrão de quando eu sei o que ouvi, só não quero acreditar no que ouvi). Um certo pânico começou a me invadir. “Jura? Mas não diz nada em lugar nenhum!” Não que eu não acreditasse, sabe como é, é mais aquele desespero de tentar se agarrar, inutilmente, numa esperança que é tão sólida quanto fumaça. Olhei o ingresso, entrei no site do Benfica, nada. “Tá vendo? Não diz nada!”

“É uma regra nova, baixaram a lei tem uns três dias. Sabe como é, essa variante nova supertransmissível e tal. Ômicron, né?”

O pânico terminou de se instalar. Onde raios eu podia fazer o exame? Ficava pronto a tempo? O jogo era dali a umas três horas! Pesquisei na internet e, com efeito, a regra era nova, aquele era o segundo jogo onde a exigência estava valendo, mas o site garantia que nos arredores do Estádio da Luz, o local do jogo e casa do Benfica, havia alguns locais montados especialmente para atender aos torcedores mais atrasados, como eu. Mas a informação era vaga, não apontava os endereços desses locais. O único mencionado pela reportagem, eu fui consultar, estava fechado naquele dia, pois era um feriado nacional em Portugal.

Munido apenas da esperança irracional que só um torcedor tem, saí correndo para o estádio, torcendo para, ao chegar no entorno, encontrar algum lugar aberto fazendo o teste, e cujo resultado saísse a tempo de ver a partida e que não custassse os olhos da cara.

(continua na parte 2)

Pague para entrar, reze para sair – 6

(As partes anteriores da história: prólogo, 1, 2, 3, 4, 5)

Parte 6

Não são poucas as séries que têm, lá pelo meio da temporada, aquele episódio que não leva a história para frente, que você assiste e percebe que é apenas enrolação. São os chamados “fillers”, que servem para isso mesmo: encher linguiça.

Então, já aviso de antemão que essa parte da história pode ser considerada um filler, porque não leva a narrativa para frente, não tem a ver diretamente com a epopeia de tentar sair dos Estados Unidos. Mas vou enfiar essa parte aqui porque ela tem influência indireta na história. É  um acontecimento marcante que ajudou a abalar a nossa parte financeira e, principalmente, a minha parte emocional.

Em dezembro de 2019, passando o natal na Bahia, meu pai sofreu dois desmaios, que todo mundo, inclusive os médicos do posto de saúde onde ele foi atendido, pensaram ser decorrência do calor excessivo, queda de pressão, essas coisas. Voltou para São Paulo e, como seguro morreu de velho, foi fazer exames só para garantir que não era nada. Entrou no hospital dia 26 de dezembro e de lá não mais saiu.

Os exames mostraram uma gravíssima infecção pulmonar, que já tinha afetado um pulmão inteiro e estava tomando conta do outro.  Ele foi internado direto na UTI. Depois de dez dias de melhoras e pioras sucessivas, eu decidi que tinha que visitá-lo. Todo mundo sabe como é cara uma passagem internacional comprada em cima da hora, mas naquele momento o dinheiro pouco importava. Passei com ele pouco mais de uma semana no Brasil. Foi quando o estado de saúde estabilizou e ele começou a ter uma melhora animadora.

Quando recebeu alta da UTI e foi para o quarto, eu voltei para os EUA (nova passagem internacional  comprada em cima da hora) exultante, o pior tinha passado. 

Mas os três roteiristas da minha vida, o Acaso, o Imponderável e o Fortuito, mais uma vez mudaram o rumo da história e, cerca de dez dias depois de ter ido para o quarto, meu pai piorou muito e voltou para a UTI. Foi sedado e entubado e, dali, nunca mais acordou. Faleceu na manhã do dia 04 de fevereiro, depois de ouvir um “Vai em paz e descanse” que minha mãe soprou em seu ouvido.

Arrasado, peguei o voo mais caro de todos, o único sem escalas que me permitiria chegar em São Paulo no dia seguinte, a tempo de participar do velório e do enterro.

Fiquei no Brasil o máximo que pude, apoiando minha mãe e minhas irmãs, e sendo apoiado por elas. Mas a Dina estava sozinha com a Lara nos EUA, eu tinha que voltar ao trabalho, e nós tínhamos que terminar de arrumar tudo para mudarmos para Portugal. Então, lá pelo fim de fevereiro, eu voltei para casa. 

Em um mês mudaríamos de país, e uma nova etapa na nossa vida começaria. 

Vida que segue, como dizem. Isso com certeza me ajudaria.

Continua no capítulo 7

Pague para entrar, reze para sair – 5

(Antes de começar o capítulo, leia a história toda, do início: prólogo, parte 1, parte 2, parte 3, parte 4)

Parte 5

“Para fazer seu passaporte italiano é muito simples”, garantiu a mulher do consulado italiano. “É só ligar via Whatsapp para uma rápida entrevista protocolar, onde conferimos todos os dados, e então marcar um horário, que normalmente é na semana seguinte, para vir fazer o passaporte no consulado, e você já sai com ele na hora.”

Ela explicando assim, parecia realmente bem fácil.Ainda não sabíamos que, em se tratando de burocracia, nada é fácil, então acreditamos.

A Dina comprou passagem para o Brasil no começo de janeiro e, na semana anterior à partida, ligou para a tal entrevista no consulado italiano.

A mulher confirmou os dados como nome, data de nascimento, estado civil. Parecia tudo  em ordem. Era só marcar o dia para que a Dina comparecesse pessoalmente para fazer o passaporte.

“Ah, esqueci de perguntar.  Você não tem filhos, certo?”

“Tenho. Ela nasceu há pouco mais de três meses.”

“Hum…”

Esse “hum” gelou a Dina. Ninguém usa “hum” antes de falar uma coisa boa. “Hum” é a linguagem universal do prenúncio de um problema. Depois de um “hum”, sempre vem merca. E, claro, a merda veio.

“Então você não vai poder fazer seu passaporte agora.”

“Não? Mas por que não?”

“Você precisa antes informar a comuna na qual está inscrita na Itália de que agora tem um filho. É só mandar a certidão de nascimento da criança, traduzida e apostilada, aqui para o consulado. Nós enviamos para lá e, assim que eles atualizarem os registros, você vem fazer seu passaporte.”

“E quanto tempo leva essa atualização lá na Itália?”

“É rápido. Um, no máximo dois meses.”

O tempo é relativo, já provou Einstein, e o tempo burocrático não é o mesmo do nosso. Mas não importava se fossem um, dois ou dez meses, a Dina tinha perdido o principal motivo da viagem ao Brasil. Seria legal rever a família e apresentar a Lara para todo mundo, claro, mas o passaporte italiano ficaria para uma próxima.

Mas tudo bem, teríamos o ano todo pela frente para fazer isso, não é mesmo?

Continua na parte 6

Pague para entrar, reze para sair – 4

(Pra entender tudo, é melhor ler antes: prólogo, parte 1, parte 2, parte 3)

Parte 4

Portugal tem uma parceria governamental-diplomática-histórica óbvia com o Brasil, e os brasileiros têm algumas facilidades para emigrarem para terras lusitanas. 

Mas a gente não queria só contar com isso, e achou melhor garantir. Depois de vários anos de um lento processo, a Dina finalmente recebeu a carta do consulado italiano informando que ela tinha direito à cidadania italiana. Era só marcar um horário no consulado italiano e fazer o passaporte. 

Acontece que ela deu entrada no processo há vários anos, quando ainda morava em São Paulo, e  portanto  teria que pedir o passaporte italiano no consulado italiano em São Paulo. A boa e velha burocracia, da qual não há como fugir, não importa que parte do mundo você vá.

Eu imagino a burocracia como uma senhora bem, bem idosa, que exala um leve odor bolorento. Ela nunca teve muitos amigos e, os poucos que teve, incluindo o marido, ou morreram cedo ou acabaram por abandoná-la, deixando-a completa e irremediavelmente só. Isso criou um ser amargo, rancoroso, que não é simpático a ninguém. E que, com o avanço da idade, acabou por desenolver artrite, que dificulta seus movimentos e sua rapidez, e algum tipo de demência senil, que a faz mudar de ideia a toda hora, e a proferir diferentes ordens no espaço de poucos minutos, muitas dessas ordens incrivelmenrte contraditórias ou que não fazem o menor sentido.

Essa é a burocracia. E ela ainda iria atravancar o nosso caminho muitas e muitas vezes.

Continua na parte 5

Pague para entrar, reze para sair – 3

(Começou por esse capítulo? Volte pro prólogo, parte 1 ou parte 2)

Parte 3

Sem conseguir o green card e nem o visto de trabalho para a Inglaterra, sobrou para nós, eu e Dina, Dina e eu, arrumarmos para onde ir e bancar as despesas da viagem, sem qualquer ajuda de qualquer empresa (minha ou dela). Pelo menos minha chefe tinha me garantido que pouco importava o país que fosse, eu iria continuar trabalhando com eles, como freelancer.

Foi aí que eu e Dina nos lançamos em uma pesquisa mundial.  Buscamos países interessantes de se morar, separamos países baratos de se morar, listamos países seguros de se morar, anotamos países onde se falava alguma das línguas que sabíamos e descobrimos países que deixavam a gente entrar.  

Canadá, Austrália, Holanda, África do Sul, Israel, Nova Zelândia, Hong Kong, Índia, Itália… Havia candidatos em todos os continentes. Pesquisamos possibilidades, pesamos dificuldades e custos de deslocamento, avaliamos expectativas de futuro e chegamos a uma decisão.

Portugal.

Um país fácil de brasileiros entrarem, que falava a nossa língua, com custo de vida relativamente barato, bastante seguro, e era a porta de entrada para percorrermos a Europa viajando. E todas as pessoas que comentamos nossa intenção de mudar para terras lusitanas, endossavam a ideia: “Vocês vão adorar”, “Lá é lindo”, “Eu visitei e moraria fácil”.

Realmente parecia que Portugal era o nosso destino.

O que tinha para dar errado, certo?

Continua na parte 4

Pague para entrar, reze para sair – 2

(Leia antes o prólogo, ou a parte 1)

Parte 2

Como o Green Card não deu certo, minha chefe veio com outra proposta.

Toda a equipe de tradutores da empresa trabalhava no escritório em Brighton, Inglaterra. Eu era o único que estava na matriz nos EUA. 

E se a empresa me mandasse para lá, junto com o resto da equipe? Eu estaria disposto a mudar para a Inglaterra?

“Of course, my horse!“, respondi na hora. Na verdade não foi bem isso, não pega bem chamar a chefe de horse, mas foi algo nessa pegada, só que mais polido.

Iniciou-se então o processo da transferência e estávamos certos de que a Inglaterra seria nosso próximo lar.

Mas os três roteiristas da minha vida, o Acaso, o Imponderável e o Fortuito, tinham outras ideias. A Dina engravidou, e a época prevista para a conclusão do processo de transferência coincidia com um momento da gravidez na qual a Dina não poderia viajar de avião. Resolvemos, então, esperar até a Lara nascer, para então irmos.

Quando enfim a Lara nasceu – no começo de setembro de 2019 – e estava apta a viajar – já era dezembro de 2019, após darmos novamente entrada no processo de transferência, o RH me informou que, por conta do Brexit, meu visto tinha sido negado. Mais uma porta de saída dos EUA se fechava na minha cara.

Mas agora só tínhamos em torno de quatro meses para decidir o que fazer.

Continua na parte 3

Pague para entrar, reze para sair – 1

(Não pegou o começo? Então leia o prólogo)

Parte 1

A história começa com o fim da nossa estadia nos Estados Unidos.

Desde que nos mudamos para os EUA, estava claro que seria algo temporário. O mundo é muito grande e muito interessante para limitar a vida à terra do Tio Sam e ao american way of life. E, honestamente, diferente de muita gente, os Estados Unidos nunca foram para nenhum de nós dois uma paixão, um desejo. Calhou da Dina receber uma proposta de trabalhar fora, e ela aceitou. Poderia ser em Hong Kong ou em Praga, ela também teria aceitado.

Pois bem, os quatro anos de contrato chegariam ao fim no dia 01 de abril de 2020 e, sabendo que ficar nos Estados Unidos não era uma opção, tínhamos que decidir para onde ir. 

Sorte que ainda tínhamos bastante tempo. Era abril de 2019.

Falei com a minha chefe que sairia dos EUA, e ela ofereceu que a empresa me apadrinhasse para um green card. Ficar no país não era exatamente a nossa ideia, mas um green card para ir e vir não atrapalha, né?

Entretanto, antes que eu pudesse dizer “ok, aceito”, veio o RH da empresa com um porém. Donald Trump, eleito alguns anos antes, vinha dificultando ao máximo a aquisição de vistos de trabalho para estrangeiros. No caso do Green Card, o processo tinha ficado muito mais caro, e o tempo para a obtenção do documento tinha dobrado.

Por ter ficado muito mais caro, a empresa disse que não teria como bancar todos os custos. Mas que se eu bancasse metade do valor, eles estariam dispostos a me apadrinhar.

Agradeci, mas declinei. Os Estados Unidos nunca foram nosso sonho de consumo mesmo, não havia porque gastar nosso dinheiro para ficar.

Teríamos que achar outra solução.

Continua na parte 2

Pague para entrar, reze para sair – Prólogo

Pague para entrar, reze para sair.

Esse é o título de um filme de terror dos anos oitenta, ápice dos slasher movies, em que um grupo de jovens entra num parque de diversões assombrado e eles vão sendo mortos, um a um, até que apenas uma das meninas escapa. Fim.

É um daqueles clássicos das noites de sábado do Supercine na Globo (e ao qual não me atrevo a reassistir, porque deve ser uma porcaria. Melhor ficar com essa lembrança romantizada).

Lembrei desse título pois foi assim que nos sentimos por meses: angustiados, às vezes até desesperados, rezando para sair dos Estados Unidos.

Toda a epopeia, sem sangues nem mortes, mas com subidas e descidas como os de uma montanha-russa, você poderá acompanhar nos próximos vários capítulos (todos bem curtos, eu prometo tentar).

“Ainda riremos muito disso”, eu disse à Dina em algum momento do turbilhão.

Essa é a minha forma de rir do acontecido. Acompanhe e ria comigo.

continua na parte 1