Uma em um milhão – parte 3

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ou a parte 2

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Eu estava chateadíssimo. Não pude entrar no jogo, perdi o dinheiro do ingresso, deixei minha cerveja de lado e, pior de tudo, toda a minha família podia estar também contaminada. Realmente, não tinha nada de positivo na novidade, só o resultado do exame de covid.

Mas a gente quase não se expunha, raramente saía de casa e, na eventualidade de sair, nunca era sem a máscara. Como é que fui pegar isso? A caminho de casa, passei na farmácia e comprei um kit de autoteste para minha esposa fazer.

Uma coisa boa é que eu não tinha sentido nada, e tampouco minha esposa ou minha filha tinham apresentado qualquer sintoma (caso elas também tivessem infectadas, o que era quase certo, dado que compartilhávamos a mesma casa, bem de pertinho). “Se bem que na segunda-feira eu acho uqe estava mais cansado mesmo, e se prestar atenção até acho que estou com uma dorzinha de garganta agora, e uma pequena dificuldade de respirar, mas coisa pouca”, disse para a minha esposa.

De qualquer forma, precisaríamos nos isolar, não pderíamos sair de casa, muito menos a minha filha ir para a escola, e a expectativa de ficar com uma criança ativa por dez dias apenas dentro de casa por si só já nos cansava. Liguei para o Serviço de Saúde para informar que tinha testado positivo, eles ratificaram a necessidade de confinamento e iam seguir nos monitorando. O autoexame da minha esposa deu negativo e, só por desencargo de consciência, eu fiz um dos autotestes e ela refez o exame. De novo o dela deu negativo e o meu, surpresa!, também. Foi a primeira vez que o alarme de “e se o resultado positivo estiver errado” acendeu. Mas era bastante provável que estivéssemos fazendo algo errado no autoteste. Decidi que quando ela e minha filha fossem fazer o exame na farmácia no dia seguinte, eu faria de novo, só para ter certeza.

Dia seguinte, bora lá a família inteira para a farmácia mais próxima, aqeuel aperto no coração não só de estar infectado, mas de obrigar uma criança de 2 anos a fazer o exame de enfiar um cotonete no nariz, mas a profissional era muito boa, nossa filha é um anjo e tudo correu bem. Quando os resultados saíram, mais um sinal de opa! tem algo estranho aí: nossos três exames deram negativo. A “dorzinha de garganta e a pequena dificuldade de respirar, coisa pouca” milagrosamente desapareceram quando li o resultado.

O teste de PCR com certeza iria dirimir qualquer dúvida, mas eu só conseguia fazê-lo se um médico me desse uma receita. Quer dizer, se eu quisesse fazer de graça, mas eu podia pagar uns 60 ou 80 euros para fazer particular. Liguei para o Serviço de Saúde e expliquei a situação, um primeiro exame positivo, depois mais dois negativos, assim como negativos estavam também o do restante da família. “Será que não seria bom fazer um PCR não? Assim, só uma sugestão”, e eles concordaram, e disseram que o médico me mandaria o pedido em uns três ou quatro dias e que, se não chegasse nesse meio tempo, para eu ligar de novo. Era quinta-feira à tarde e, de novo, lembrando de toda a burocracia que venho enfrentando em Portgual há mais de um ano, eu imaginei que o pedido para o exame não chegaria na sexta, afinal sexta é sexta, né, quem trabalha de sexta?, e nem no sábado e nem no domingo, e com sorte só na semana seguinte. Se bem que eles disseram num tom meio vago “entre três ou quatro dias, msa pode não chegar, aí você nos liga de novo”, que não seria surpresa de o tal pedido de exame de PCR chegasse só dali a dez dias.

E queimei a minha língua. A burocracia portuguesa e os processos e as repartições públicas são sim de enlouquecer, mas parece que nessa coisa de covid eles não estavam brincando, todo o processo parecia ter uma eficiência incomum, e na sexta-feira na hora do almoço o médico me liga, confirma o caso da covid de Schrodinger, com o teste positivo e negativo ao mesmo tempo, e diz para eu passar no posto de saúde e pegar o pedido do PCR. Tão logo desliguei o telefone, já partimos todos rumo ao posto, minha esposa fez questão de acompanhar para resolver logo o assunto, e levamos nossa filha a tiracolo.

Eu sei que sou prolixo, descrevo as situações com detalhes excruciantes, então agora serei sucinto, poupando o leitor de uma entediante maratona de “vai ali, pega senha, fala com fulano, não é aqui, vai na outra sala, mais uma senha”, mas depois de algumas horas finalmente peguei a tal guia de exame. Aqui, uma menção honrosa à minha digníssima esposa que, durante todo esse processo de buscar o pedido de exame, esperou dentro do carro, e sabe-se lá como conseguiu entreter a nossa filha por duas horas. Sim, duas horas com uma criança, dentro de um carro estacionado. Nessas horas a gente vê a capacidade de superação humana.

A sorte ainda estava nos sorrindo, pois encontrei um centro ali perto que fazia o teste PCR, gratuito, sempre bom lembrar, e tinha horário para dali a vinte minutos. O exame, aliás, é horroroso, se você quer um bom motivo para não pegar covid, além de não correr o risco de adoecer e não conseguir respirar e ser internado e talvez quem sabe até morrer, eu diria que não precisar fazer esse exame é um desses bons motivos. Tem-se a impressão que eles recolhem material da sua amídala, a partir de um troço que te enfiam no nariz. Mas nem tudo foi perdido, depois de inúmeras tentativas malsucedidas de enfiar o troço na narina direita, aprendi que tenho ali algum tipo de desvionasal ou do septo, que a narina esquerda em compensação é uma marivilha, uma enorme rodovia reta e sem pedágio. “Na próxima vez que fizer este exame, já pode informar à pessoa para usar sua narina esquerda”, aconselhou a enfermeira, sempre sorridente e simpática. Difícil ficar nervoso com alguém que está sempre sorridente e simpático com você, mesmo se esse alguém estiver enfiando algo nas profundezas do seu nariz. “Em quanto tempo sai o resultado?”, perguntei ainda entre as lágrimas que o exame invariavelmente provoca. “Em até 48 horas. Mas tem vindo em cerca de 36h. Mas se calhar pode vir até antes.” Gosto disso, de precisão.

Mas ela no fim das contas não estava errada, 36 horas depois veio a confirmação de que eu estava negativo para a covid, e que o primeiro exame tinha sido um falso positivo. Tinha visto que falsos positivos nesse caso são raríssimos, tipo uma chance em um milhão, e eu tinha sido sorteado. Para ganhar na megasena essa probabilidade não me alcança, mas para dar um falso positivo num teste, algo que vai te dar um monte de dor de cabeça, aí sim.

Nada que devesse me surpreender. Pelo menos, deu uma boa história.

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